A FLEXIBILIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE DE BENS NA EXECUÇÃO CIVIL
A execução é a fase processual que busca a realização prática de uma obrigação. Diferentemente da fase de conhecimento, não há mais discussão sobre a existência do direito, mas sim a efetivação de seu cumprimento, seja por meio de uma sentença judicial ou de um título executivo extrajudicial.
Ou seja, a execução busca a satisfação do direito do credor de diversas formas, dependendo da natureza da obrigação, como, por exemplo, a execução por quantia certa, a obrigação de fazer ou não fazer e a obrigação de entregar coisa certa.
É necessário pontuar que, para que seja possível a instauração da execução, é necessário estarmos diante de uma obrigação certa, líquida e exigível, conforme disciplina o artigo 786 do Código de Processo Civil.
Neste artigo, aprofundaremos na execução por quantia certa, que visa o recebimento de dinheiro. Nessa modalidade, o juiz pode determinar a penhora de bens do devedor para que sejam vendidos ou leiloados, utilizando o dinheiro arrecadado para quitar a dívida.
Quando o devedor não realiza o pagamento voluntário do débito, o credor pode utilizar meios legais para buscar o recebimento do crédito. Com auxílio do Poder Judiciário, o credor pode penhorar valores em contas bancárias, veículos e imóveis do devedor.
É importante destacar, contudo, que, embora haja diversos meios de buscar a satisfação do crédito, alguns bens e valores do devedor são considerados impenhoráveis. Trata-se de uma proteção legal que impede que sejam tomados pela Justiça para saldar uma dívida.
O principal objetivo dessa proteção é garantir o princípio da dignidade da pessoa humana. A lei entende que, por mais que o credor tenha o direito de ter seu crédito satisfeito, a execução não pode comprometer a sobrevivência digna do devedor e de sua família. Não se trata, portanto, de uma proteção para que o devedor se esquive de suas responsabilidades, mas sim de um equilíbrio entre o direito do credor e a necessidade de o devedor manter um “mínimo existencial“.
Os bens impenhoráveis estão previstos principalmente no artigo 833 do Código de Processo Civil e na Lei n. 8.009/90. Dentre eles é possível citar os salários, aposentadorias, pensões, a única residência da família, ferramentas de trabalho, entre diversos outros.
No entanto, é fundamental compreender que a jurisprudência e a doutrina têm evoluído, indicando que a impenhorabilidade não é absoluta. Existem situações em que a proteção pode ser relativizada.
A “flexibilização da impenhorabilidade” é um conceito que reflete a tendência do Judiciário em relativizar a proteção de certos bens, buscando um equilíbrio com o direito do credor à satisfação de seu crédito.
Uma das principais flexibilizações é a penhora de verbas salariais para dívidas não alimentares. A regra geral, expressa no artigo 833, IV, do Código de Processo Civil, é a impenhorabilidade de salários, aposentadorias e pensões. A principal exceção sempre foi para o pagamento de pensão alimentícia. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido a penhora parcial de salários, desde que o valor penhorado não comprometa a subsistência do devedor e de sua família.
Como exemplo prático, considere a seguinte situação: um professor contrai uma dívida com uma construtora. Em razão disso, a empresa credora ajuíza uma ação de execução contra ele. Diante da ausência de bens penhoráveis, o juízo autoriza a penhora parcial do salário do professor, no percentual de 30%, determinando que o desconto seja realizado diretamente por seu empregador.
A interpretação nesse caso é que, se o devedor recebe um salário, penhorar uma parte dele pode ser a única forma de garantir o pagamento de uma dívida sem ferir o princípio da dignidade. O objetivo é equilibrar a proteção do devedor com a necessidade de efetividade da execução. A análise deve ser feita caso a caso, considerando-se o valor total recebido e o montante da dívida.
Outra flexibilização relevante diz respeito ao bem de família, protegido pela Lei n. 8.009/90, onde há a possibilidade de penhora do imóvel quando a dívida tem origem na própria moradia, a exemplo de débitos de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e taxas de condomínio.
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento na Súmula n. 549 de que o imóvel do fiador em contrato de locação pode ser penhorado para garantir o pagamento de aluguéis atrasados, mesmo que seja seu único bem. Isso visa dar segurança aos contratos de locação.
A jurisprudência mais recente tem flexibilizado a impenhorabilidade de valores aplicados em previdência privada (VGBL e PGBL) e outros fundos de investimento. Anteriormente, esses valores eram considerados de natureza alimentar e, portanto, impenhoráveis.
O entendimento atual, no entanto, é que, se a aplicação for de alto valor e tiver características mais de investimento do que de reserva para a subsistência, a impenhorabilidade pode ser afastada. A análise recai sobre a capacidade do devedor de viver com o restante de seus rendimentos, a natureza da aplicação e o montante protegido.
Essa flexibilização reflete a necessidade de o sistema judicial adaptar-se a novas formas de patrimônio, evitando que devedores com altas quantias em investimentos se protejam da execução, enquanto credores ficam sem receber.
Em resumo, a flexibilização da impenhorabilidade não é um ataque à proteção do devedor, mas sim uma evolução do direito para alcançar uma justiça mais equitativa, ponderando a dignidade humana com a efetividade da execução. A tendência é que a impenhorabilidade seja afastada quando houver abuso, fraude ou quando o bem não for, de fato, essencial para a manutenção da dignidade da pessoa e de sua família.
Referências:
CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
CPC/15 – Código de Processo Civil
Lei n. 8.009/90 – Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.
Súmula n. 549 do STJ – “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação.” (REsp n. 1.363.368).
Superior Tribunal de Justiça STJ – Agravo Interno no Recurso Especial – AgInt no REsp n. 2102674 SP 2023/0366706-5
Autor(a):Eduarda Marques