Os Embargos de Terceiro: Instrumento Essencial na Defesa do Patrimônio de Boa-Fé em Processos Penais

Os Embargos de Terceiro: Instrumento Essencial na Defesa do Patrimônio de Boa-Fé em Processos Penais

A dinâmica complexa do sistema jurídico, especialmente na intersecção entre o direito civil e o criminal, pode gerar situações desafiadoras. É o caso da constrição judicial de bens que afetam terceiros alheios à lide. 

Quando uma medida cautelar, como o sequestro de bens em um processo penal, recai sobre o patrimônio de um adquirente de boa-fé – aquele que agiu licitamente e sem qualquer envolvimento com o ilícito investigado – emerge a necessidade premente de um instrumento de defesa eficaz. A ausência de um rito processual específico no Código de Processo Penal (CPP) para essa finalidade tem gerado notável controvérsia. 

No entanto, a aplicação inovadora de institutos existentes tem se mostrado a via para a salvaguarda de direitos. 

A Problemática Jurídica e o Instrumento Processual:

O CPP, em seus artigos 125 e seguintes, prevê o sequestro de bens como medida assecuratória para a recuperação de ativos ilícitos ou garantia de reparações. Contudo, essa legislação é omissa quanto ao procedimento para a defesa do terceiro de boa-fé que tem seu bem atingido por tal constrição. 

Essa lacuna fomenta o debate sobre a autonomia do processo penal e a aplicação subsidiária de outras normas.

Nesse contexto, os Embargos de Terceiro, instituto tipicamente processual civil (disciplinado pelo Art. 674 do Código de Processo Civil – CPC), emergem como a resposta necessária. 

Sua aplicação em matéria criminal é justificada pela expressa previsão do Art. 3º do CPP, que autoriza o uso subsidiário do CPC. 

Mais do que uma mera lacuna normativa, a utilização dos Embargos de Terceiro garante a observância de princípios constitucionais fundamentais, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e o direito de propriedade, assegurando a segurança jurídica do terceiro de boa-fé.

Estudo de Caso: A Reafirmação da Tese na Prática:

Recentemente, a atuação de nossa equipe ilustrou a efetividade dessa abordagem. Uma empresa do ramo da construção, agindo com integral boa-fé, adquiriu um imóvel em 2020, formalizando a transação por contrato e comprovando o pagamento integral. 

Subsequentemente, a empresa realizou vultosos investimentos na propriedade, incluindo a construção de uma residência e a regularização de toda a documentação perante os órgãos competentes, demonstrando sua posse e propriedade legítimas.

Anos após a aquisição (em 2022), o imóvel foi alvo de uma ordem de indisponibilidade decretada em um processo criminal contra o alienante, no âmbito de uma operação policial. 

A relevância jurídica reside no fato de que o imóvel havia sido adquirido pelo antigo proprietário em 2009, ou seja, anos antes do período dos ilícitos investigados, comprovando que o bem não era produto ou instrumento do crime.

Diante da constrição indevida, a empresa ingressou com os Embargos de Terceiro. 

A solidez da comprovação da boa-fé, da legalidade do negócio jurídico e da inexistência de vínculo do bem com a infração foi determinante. O próprio Ministério Público, após análise das provas, manifestou-se favoravelmente ao levantamento da constrição, reconhecendo a procedência lícita do imóvel e a boa-fé do terceiro adquirente.

Embora a liminar tenha sido indeferida, no mérito a decisão judicial proferida pela 7ª Vara Criminal de Cuiabá confirmou integralmente a tese. 

O Juízo julgou procedentes os Embargos de Terceiro, reconhecendo a legalidade da aquisição e a ausência de razões para a manutenção do sequestro, inclusive ponderando a onerosidade excessiva para o terceiro. Esta sentença representa um importante e inovador precedente na aplicação dos Embargos de Terceiro para a proteção do patrimônio de boa-fé em matéria criminal.

A Efetivação da Tutela Jurisdicional e Seus Desafios:

Apesar da vitória judicial, a efetiva liberação do bem pode apresentar desafios procedimentais. No caso em questão, o Cartório de Registro de Imóveis, inicialmente, recusou-se a cancelar a indisponibilidade, exigindo que a comunicação fosse feita diretamente pelo juízo de origem via Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB), conforme previsto nos Provimentos nº 39/2014 e 142/2023 da Corregedoria Nacional de Justiça. 

Essa situação, que culminou em uma Suscitação de Dúvida julgada improcedente, destacou a complexidade da harmonização entre as esferas judicial e registral. 

A solução, nesse cenário, exigiu que o próprio Juízo que concedeu os embargos de terceiro atuasse diretamente na CNIB para dar plena efetividade à sua decisão.

Considerações Finais: A Relevância da Tutela do Terceiro de Boa-Fé

A experiência analisada reforça a premissa de que os Embargos de Terceiro são um instrumento processual cabível e essencial para a salvaguarda do patrimônio de terceiros de boa-fé em processos penais. 

A conjugação da aplicação subsidiária do CPC, da comprovação inequívoca da licitude do bem e da boa-fé do adquirente, e da desvinculação com o ilícito, provou ser uma estratégia jurídica robusta e vitoriosa.

A importância dessa tese transcende o caso concreto, abrindo caminho para a proteção de outros cidadãos e empresas que possam ser inadvertidamente afetados por medidas cautelares criminais.

 A segurança jurídica e a proteção ao patrimônio do inocente são pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, e a efetivação desses direitos, mesmo em campos controversos, é uma premissa inegociável da justiça.

A profunda relevância e a complexidade dessa temática nos motivaram a aprofundar este estudo, que em breve será lançado como um livro, oferecendo um guia completo sobre o assunto.

Referências Básicas

  • Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
  • Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941).
  • Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).
  • Provimento nº 39/2014 do Conselho Nacional de Justiça e Provimento nº 142/2023 do Conselho Nacional de Justiça (Regulamentam a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB).

Autor(a):Fernando Mascarello