Responsabilidade Civil da Instituição Financeira no Golpe do PIX: A Proteção do Consumidor e a Efetividade da Tutela Jurisdicional
Introdução
O avanço tecnológico e a popularização dos meios de pagamento instantâneos, como o PIX, trouxeram inegáveis facilidades para as transações financeiras no Brasil. Contudo, esse mesmo cenário ampliou o campo de atuação de fraudadores, que se valem de artifícios para induzir vítimas ao erro, resultando em transferências indevidas. O chamado “golpe do PIX” tem se tornado recorrente, gerando intensos debates sobre a responsabilidade das instituições financeiras diante do prejuízo sofrido pelo consumidor.
A análise dessa problemática exige a conjugação de princípios do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) e das normas do Banco Central do Brasil, especialmente no que diz respeito ao dever de segurança na prestação de serviços bancários.
A Problemática Jurídica e a Responsabilidade da Instituição Financeira
O art. 14 do CDC estabelece que “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.
No âmbito bancário, essa regra é reforçada pela Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual:
“As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.”
Além disso, o art. 927, parágrafo único, do Código Civil prevê a responsabilidade objetiva nos casos em que a atividade desenvolvida pelo autor do dano implica risco para os direitos de outrem. As operações financeiras, pela sua natureza e impacto, enquadram-se nesse conceito.
O golpe do PIX, quando comprovada a falha de segurança da instituição financeira, enquadra-se no conceito de fortuito interno, uma vez que decorre de risco inerente à atividade bancária, especialmente diante da velocidade e irreversibilidade da transferência. A ausência de mecanismos de prevenção eficazes ou de resposta imediata ao alerta do cliente caracteriza falha na prestação do serviço, abrindo espaço para a responsabilização de natureza civil.
A regulação do Banco Central, especialmente a Resolução BCB nº 1, de 12/8/2020, que institui o PIX, e o Mecanismo Especial de Devolução (MED), previsto na Resolução BCB nº 103, de 8/6/2021, impõe às instituições financeiras a obrigação de adotar controles para prevenir fraudes e de atuar de forma diligente diante de comunicações de transações suspeitas.
Estudo de Caso: Aplicação Prática da Tese
Em recente demanda judicial, um correntista foi vítima de um golpe em que hackers, em um fim de semana, acessaram sua conta e realizaram transferências via PIX em valores acima do habitual. Por ser fim de semana, apenas na segunda-feira foi possível adotar medidas, ocasião em que comunicou a instituição financeira e solicitou a adoção do MED. A instituição alegou que não poderia agir, pois as transferências já haviam sido concluídas.
A defesa do consumidor fundamentou-se na falha de segurança do sistema, na ausência de protocolos de bloqueio emergencial eficazes e na aplicação da responsabilidade objetiva prevista no art. 14 do CDC e nos arts. 186 e 927 do Código Civil.
O juízo reconheceu a responsabilidade da instituição financeira, determinando a restituição integral do valor, acrescida de indenização por danos morais, enfatizando que deveriam ter sido adotados mecanismos eficazes de segurança.
Esse entendimento seguiu precedentes do STJ e de Tribunais de Justiça, que reforçam a obrigação dos bancos de adotar medidas preventivas, como análise de comportamento atípico, canais ágeis de contestação e integração com o Mecanismo Especial de Devolução do Banco Central.
A Efetivação da Tutela Jurisdicional e Seus Desafios
Embora decisões favoráveis ao consumidor sejam cada vez mais comuns, a efetividade prática da reparação pode enfrentar entraves e levar tempo, o que pode gerar ainda mais danos à parte vulnerável que sofreu o golpe. Em algumas situações, o valor objeto da fraude corresponde a salários, que seriam utilizados para pagar despesas rotineiras como água, luz, telefone, entre outras.
Além disso, a recuperação do valor transferido exige, muitas vezes, a atuação do Poder Judiciário, o que demanda rapidez incompatível com a dinâmica dos golpes.
A ausência de padronização nos procedimentos internos dos bancos para bloqueio emergencial ainda constitui um obstáculo, gerando disparidade no atendimento aos clientes e comprometendo a uniformidade da tutela jurisdicional.
Considerações Finais: A Relevância da Responsabilização Bancária no Contexto Digital
O combate ao golpe do PIX e a responsabilização das instituições financeiras vão além da reparação individual: representam um instrumento de proteção coletiva e de incentivo à adoção de medidas preventivas mais robustas.
A responsabilidade objetiva prevista no art. 14 do CDC, no art. 927, parágrafo único, do Código Civil e consolidada na Súmula 479 do STJ cumpre papel pedagógico e protetivo, reforçando que a inovação tecnológica deve caminhar lado a lado com a segurança e a confiança do usuário.
A efetividade dessa proteção é essencial para preservar a credibilidade do sistema financeiro e garantir que a conveniência do PIX não se transforme em vulnerabilidade para o consumidor.
Fontes:
BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Recurso Inominado Cível nº 5011369-92.2024.8.08.0024, Rel. do acórdão Rafael Fracalossi Menezes. Turma Recursal – Terceira Turma. J. em 17.12.2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Recurso de Apelação Cível nº 1045207-93.2023.8.11.0041, Rel. do acórdão Carlos Alberto Alves da Rocha. Terceira Câmara de Direito Privado. J. em 02.04.2025.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso de Apelação Cível nº 1000985-63.2023.8.26.0060, Rel. do acórdão Léa Duarte. Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma IV (Direito Privado 2). J. em 03.10.2024.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 479. Segunda Seção. J. em 27.06.2012, DJe 01.08.2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 297. Segunda Seção. J. em 12.05.2004, DJe 08.09.2004.
Autor(a): Dra Daiane Tiburski